Gabriel Tarde (1843 - 1904) |
Não
bastava, portanto, ter um belo casal em alguma parte da Terra, um homem e uma
mulher amando-se e colhendo frutos! Era preciso haver tribos, nações, multidões
e massas de fatos, chamados história, que essas multidões acumulam ao se
desenvolverem! Por que isso, se o universo ama a ordem acima de tudo? Por que a
harmonia individual é imolada à desordem social? E de onde nos vem esse
invencível erro, tão contrário ao nosso interesse, de nos considerarmos, a nós,
com nossos órgãos equilibrados, nosso corpo maravilhoso, nossos sentidos
admiráveis, como inferiores a essa reunião grosseira de engrenagens
administrativas, financeiras, judiciárias, de instituições isoladamente
bastante mal construídas e ainda mais mal ajustadas no conjunto? De onde nos
vem – se não, talvez, da tendência universal que se exprime em nossos gostos -,
de onde nos vem essa inclinação que nos leva a contemplar primeiro o que esta
Terra tem de mais extravagante e de mais desordenado, a beleza pitoresca de
suas paisagens, e a ela voltar com freqüência no intervalo de nossos estudos, e
a repousar enfim nossos olhos nessa extravagância deliciosa, após ter passado
algumas horas ou alguns dias de nossa vida a considerar a natureza sob seus
aspectos regulares e harmoniosos, em suas leis, em seus elementos, em suas
plantas e suas formas animadas? Aquele que poderia passar a olhar a mais bela
flor ou o mais belo corpo, ou a estudar a mais bela teoria, por que passa o
tempo a ver, quando passeia, sentado ou deitado na grama, as copas das árvores balançando-se,
um rio correndo, um horizonte a ondular? Por toda parte mostra-se essa
predileção de nosso gosto pelo pitoresco, menos impressionante e mais cativante
que o orgânico. Homero nos encanta pela semi-exatidão de suas imagens, por seus
episódios, pela incompleta ordenação de seu plano; preferimos essa livre
atitude à simetria de obras mais perfeitas, isto é, melhor arranjadas.
Preferimos a leitura da história ao estudo das instituições sociais; os
próprios relatos dos tempos merovíngios, ainda que bárbaros e confusos, nos
encantam mais, ou nos cansam menos rapidamente, que a explicação de nosso
código civil, mesmo em suas partes mais acabadas, ou o detalhe das máquinas ou
dos funcionários que compõem o sistema de iluminação de uma cidade (apesar do interesse
que alguns escritores souberam dar a questões desse gênero). Seguramente não há
nada mais coordenado que as instituições parisienses; tudo nelas é obra-prima,
desde as ramificações dos esgotos até a organização interna do banco da França;
é algo interessante de analisar por um momento, de compreender; mas, uma vez
compreendido, não se pensa mais nisso, as pessoas se envergonhariam de
confessar que contemplaram essas coisas. Contempla-se um tumulto de rua,
e quem contempla julga-se filósofo. Ele o é, de fato, mas com a condição de
inscrever no cabeçalho de sua filosofia Diferença e não Harmonia. Caso
contrário estaria em contradição consigo mesmo. Efetivamente, não cometemos um
erro por sermos mais ávidos de conhecer os acontecimentos acidentais e únicos
da história do que os mecanismos sociais. Estes existem realmente para aqueles;
as instituições sociais (administração, justiça, clero, gramática e dicionário
do idioma nacional, edilidade etc.) estão subordinadas ao que é sua
confluência, sua luz e seu termo: o estado social em um momento dado, a
situação histórica. E temos razão de gostar mais de ver desenrolarem-se essas
situações, em nossas crônicas e nossas histórias, que de estudar nossos códigos
– assim como temos razão de preferir a visão do mar e das falésias acidentadas
ao exame de uma concha recolhida na areia, embora a concha seja bem mais
regularmente desenhada que as falésias e o mar.
*trecho lido durante permanência em Cachoeira - Bahia, Brasil (03/09/2013 à 09/09/2013).
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