domingo, 21 de julho de 2013

Dispositivo 2' - A máquina e o espaço

... e Elas os criaram à sua imagem e semelhança.




















Com a revolução industrial, um dado periférico, mas não o menos importante, será o fato do homem (e isso não implica no universal da espécie, visto essa ser uma sociedade ainda masculinista e excludente), ter principiado sua prostração e acoplamento a toda sorte de máquinas; o trabalho artesanal, nostálgico por seu contato direto com a matéria, é substituído por autômatos que agora desempenharão tarefas, antes até mesmo impossíveis, com maior rapidez e eficiência, bastando ao homem dar partida ou um manuseio de eficiência: ferramentas de transformação das matérias-primas que irão, em última instância, substituí-lo.

Todo esse insurgente maquinário transformou profundamente a sensibilidade humana, em especial, por marcarem a passagem de uma cultura baseada na tradição e estratificação das relações rurais à outra percepção agora orientada pelo choque e dispersão dos centros citadinos. Porém, inseridas numa teleologia iluminista e positivista do progresso, todas essas invenções logo foram domesticadas, com as decorrentes demandas cognitivas estabelecidas e novas formas de estímulo e organização assimiladas, em resposta às novas técnicas de mobilidade, habitação, trabalho, consumo e entretenimento. Importante ressaltar que essas experiências referem-se às sociedades dos “países que estavam no centro da era do imperialismo”, com o “moderno hegemônico” construindo “sua diferença no tempo (em face da tradição) e no espaço (ante os povos periféricos)”, através da “convergência de interesse científico, dominação colonial e voyeurismo”¹.

Outra alteração circunstancial ocorrerá durante essa época de aparelhamento humano sobre as concepções de Espaço e Representação; até a Idade Média, o ‘espaço’ era limitado por um horizonte em geral demarcado por um acidente geográfico, com as orientações de localização associadas às manifestações sensoriais (com relação ao levantar e pôr-do-sol, fenômenos meteorológicos, estações do ano, tempo de plantio, colheita e seca); e afora a família, a vida comunitária era relegada às festas e reuniões religiosas, normalmente sazonais. Já a ‘representação’ (pictórica, grafada, impressa, democrática) tem desde sua origem, como condição de direito, uma existência Divina. Do teatro grego, onde apenas os deuses eram dignos de drama aos monarcas da idade média, os únicos com direito a retratos dos pintores renascentistas - as representações sempre estiveram associadas com o domínio da Técnica, a execução da Lei e a escritura da História: o Poder ou a Providência, em suma.

Com a ascensão da burguesia (pós-revolução francesa e nova agente histórica), a constituição de parques industriais (estabelecendo uma classe proletária e um mercado de troca capital) e formas mais eficazes de enunciação e censura (cultura: com o aperfeiçoamento do prelo e a invenção da chapa fotográfica), outras percepções de espaço (agora endereçada por avenidas, praças e logradouros delimitando o local público do privado) e tempo (cronometrado por uma escala produtiva dividida entre trabalho, domicílio, compromissos sociais e lazer) são instituídas; e a representação assume rígidas distinções: a principal, aquela que opõe o lugar da fala ou cena, (seja púlpito, palanque ou palco) em diametral oposição ao local da escuta ou olhar (acondicionamento da congregação, multidão ou plateia).

Cabe insistir: essa invasão das inovações científicas no cotidiano e domicílios criou outra compreensão e produção do espaço social; não apenas pelas novas técnicas e matérias utilizadas pela construção (é a época em que o ferro e o vidro passam sistematicamente a serem utilizados em edificações, permitindo prédios mais altos), mas principalmente por suas finalidades (se determinado objeto é destinado ao uso industrial, comercial ou domiciliar – formando uma cadeia produtiva) e geração de acúmulo (o quoficiente da diferença entre pujança e penúria material);

O Cinema é fruto do quadro científico desse período: ao mesmo tempo testemunha e expressão máxima da modernidade, por um breve período após sua invenção, o cinematographo surge sem um estatuto definido, desprezado pela comunidade científica e sofrendo desdém cultural por parte das classes mais abastadas; essa falta de regulamentação permitiu aos primeiros filmes serem realizados numa anarquia imaginária original, com as autoridades (polícia, igreja, governo, ricos) sendo apresentados em códigos descaracterizados, onde esses poderes dominantes surgiam como pastiches de si. Mas dentre 20 anos (1895-1915, ano que coincide com o fim da primeira grande guerra europeia) um sistema industrial de fabricação de fitas estará se instalando e já terá sido cooptado pelos “poderes do mundo” que “finalmente reconhecem a importância e eficiência do cinema no plano da comunicação social” e, junto ao jornalismo e rádio, tornam-se o “altar maior da comunicação de massa”². Inicia-se assim, uma segunda fase do imperialismo colonial, não mais territorial, mas agora exportadora de sonhos e os aparelhos eletrônicos capazes de traduzi-los, destinados ao consumo pelos espíritos.

 

“A segunda colonização, não mais horizontal, mas desta vez vertical, penetra na grande reserva que é a alma humana. A alma é a nova África (...) não há uma molécula de ar que não vibre com as mensagens que um aparelho ou gesto tornam logo audíveis e visíveis”.

EDGAR MORIN in Cultura de Massas no Século XX

 

 

Um duplo movimento se instala: por uma via, a folha de jornal, as ondas do rádio e a película do cinema tornam-se o lugar por excelência dos acontecimentos “tudo o que existe, está aqui”: aparecer ou acontecer em um desses meios significa alcançar um espaço privilegiado e ser alçado a dignidade de portador e emissor dos discursos oficiais; Em paralelo, consequente a isso, essa duplicação do mundo cria uma alegoria do próprio cinema como um novo império dentro da ordem internacional, meio-ambiente das estrelas e realezas, pódio dos vencedores que mais do que uma indistinção, provoca uma indiferença “entre a realidade e suas representações”, numa nova ontologia de ordem fantasmagórica, que somente se afirma (‘eu existo’) por aparição (e retorno e sucessão). Poderíamos dizer para finalizar que o aparato (enquanto dispositivo) passou a fundar a cena.

 
 

Esse pretensioso preâmbulo histórico é, em escala pessoal, a tentativa de (re)unir alguns eventos recortados no tempo que, nem de perto, tateiam o tamanho do monstro: descontado o ignorado e o que se deu nos subterrâneos. No entanto, são interessantes quando encaradas como oportunidade de observar práticas sociais isoladas (no caso da revolução industrial, ciclo de experiências originadas numa ilha ao norte da Europa na passagem do séc. XVIII a XIX) e sua expansão pelo globo; muito menos consideramos a matéria esgotada: apenas oportunidade para distender se ocorre algum evento contemporâneo que se assemelhe no cotejo espaço-tempo, partindo de onde essa observação se origina: um espaço entre a atração e a periferia (do cinema). E não falo em periferia por fetiche, pois parece-me que é essa relação de apartado x ocupação do centro que está na crise fundadora desses ensaios em torno do dispositivo: para vê-lo melhor é preciso distância, estar fora de seu núcleo.

Rebate, também, em retorno à pergunta contida no editorial de Fábio Andrade “Mas por que falar da câmera, do sistema de captação, nos dias de hoje (...), uma vez que à crítica o interesse está adiante, nos filmes?”, e embora eu tenha recorrido exatamente aos três pontinhos excluídos dessa questão: o nicho técnico e tecnológico no qual o cinema está profundamente inserido e, ironia, não tenha falado de nenhum filme até agora.

Pareceu necessário. Inclusive pelas respostas indiretas oferecidas pelo próprio editorial “motivado pela crise da relação com a materialidade do aparato cinematográfico”, crise fundadora “no esforço de trazer de volta para a discussão uma materialidade necessária que, por muito tempo, parece ter sido impropriamente deixada de fora da equação conceitual”. Em comum, eu alegaria que “esse retorno ao passado e à concretude se revela, com isso, uma tentativa de mapear o futuro em sua virtualidade”.

Mas, e o que há de novo? E não podemos esquecer: como as experiências com dispositivos nos documentários brasileiros se traduzem nisso tudo?

Não há nada de novo: no cerne das questões alvorece a proclamada acessibilidade aos meios enunciativos (ou simplesmente, às câmeras); um fato recente: só na década de 1990 as câmeras Fuji, para fotografias caseiras, se popularizam no Brasil. Para um enorme montante de pessoas na faixa etária dos 40 anos em nosso país, fotos da infância são artigos raros e de luxo. Porém, o tipo de materialidade do suporte exigido por este regime de produção de imagens (notadamente, uma tecnologia atrelada ao século XX) tem sido varrido para as bordas pela substituição por aparelhos (re)produtores de arquivos digitais.

Essa disseminação do aparelhamento digital causou uma perturbação no modus operandi em que estavam assentados os contratos anteriores de emissão e recepção de conteúdos. Essa concessão a quem fala de/por quem versus o direito a própria imagem e palavra é todo um ponto de honra nas lutas pós-coloniais. Não carece lembrar que os canais comunicantes sempre estiveram sob controle em terra brasilis: durante o terço final do século passado, a televisão brasileira alcançou a cobertura total do território nacional, algo sintomático do momento em que o espaço público brasileiro é domesticado. A TV rouba para si, de maneira hegemônica, o porte do pronunciamento oficial e a construção do imaginário da comunidade desejada. A cultura brasileira torna-se televisiva, exibida simultaneamente para milhões de aparelhos sintonizados, ocupando o tempo. Isso não implica em tipos de interpretações de alienações. Mas sobre um espaço sequestrado, mantido em cativeiro por poucos, na extensão de seus condicionamentos.

Contudo, se o barateamento dos equipamentos e tecnologias audiovisuais e o aparecimento de plataformas de exibição com a internet compartilham a posse dos meios e possibilitam a capacidade autônoma de enunciação, também trouxeram conjuntamente, talvez até em proporção maior, a proliferação de telas – do celular ao outdoor. Um deflagrante sentimento de saturação das intermediações emergiu e causou a sensação da perda de algum bom lugar. À crítica em geral, um sentimento vago de que o cinema é um estabelecimento qualquer, apenas mágico ao nível de seu misticismo; fez-nos descobrir que o cinema tem muito mais filhos que poderíamos supor: uma geração de irmãos bastardos.

O fato notável é que essas experiências documentais contemporâneas remontam ao funcionamento dessas antigas engrenagens, em seus índices ontológicos. Os dispositivos fílmicos, em suas diversas operações, oferecem um arsenal de artifícios narrativos desmembrados, com as dobras à mostra: o que nos permite não apenas assistir historinhas da vida de alguém ou a mera observação cientifica e distanciada de dissecação, mas de maneira muito mais beneficente, torna comuns os seus processos de pretensão, produção e limitações - algo que já se apontava nas primeiras críticas sobre as regras do jogo dos filmes de Eduardo Coutinho - no encontro do entrevisto com uma trupe de cinema, revelando essa condicionante da existência. No que posso insistir, apresentam uma tese de que a oposição ao campo cinematográfico não pertença tanto ao OUT (o fora), mas principalmente ao IF (e se). Não mais IN / OUT, mas IN / IF; falam sobre o contingencial - a figuração do acontecimento: a cena. Um recorte para o qual não existe ponto cego, apenas transformismo: condição especular.

De maneira muito redutora, até mesmo redundante, durante um tempo tive certeza que a ‘história do cinema’ era a ‘história da película fotográfica’: uma pesquisa que comparasse a quantidade de filmes virgens importados pelos países e a quantidade de fitas produzidas anualmente, talvez fosse muito revelador nesse sentido e isso tanto no sistema de produção industrial de imaginários, quanto na possibilidade de filmetes caseiros. A condição da existência de um filme esteve durante muito tempo, antes de qualquer coisa, associada ao porte do meio material (câmera, rolos fotográficos, financiamentos) que possibilitariam sua fabricação e impressão. Esse sistema não desapareceu e ainda não sabemos se vemos sua aurora – embora de agora em diante ele sofra mais e mais ataques com todo tipo de mineralização e disfunção que, não nos iludamos, não impedirá a alimentação do seu núcleo; nesse universo do pré-contato, onde até o susto e a surpresa estão previamente calculados, o aparato, enquanto câmera/microfone/operadores e instrumento que vela este contrato, flagraria, inclusive, o descumprimento deste acordo. E isso é muito.


¹XAVIER, Ismail. Prefácio a edição brasileira in O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
²XAVIER, Ismail. D.W. Griffith. São Paulo: editora Brasiliense, 1984.

sábado, 13 de julho de 2013

Dispositivo 1' - A crítica e a escrita


Os comentários a seguir terão como missão orbitar entre dois pólos: ao norte, o imã magnético serão os textos publicados na edição (maio 2013) da revista online Cinética, tendo como pauta e campo de atuação, um debate amplo acerca do dispositivo cinematográfico; e nas latitudes mais ao sul, os ventos (as lembranças) de alguns títulos, em especial os documentários participantes da 45º edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

De partida, três explicações ligeiras foram recolhidas ao longo dos textos da publicação: na origem (Foucault), dispositivo denominava “um conjunto de regras que age sobre os seres viventes”. No cinema (Adrian Martin), “um filme-dispositivo (...) é ao mesmo tempo um conceito (...) e uma máquina. Antes de tudo, é um filme conceitual, (no horizonte da arte conceitual), uma disposição (...) que usualmente anuncia sua estrutura ou sistema de início, na primeira cena, até mesmo em seu título, e então deve seguir o caminho traçado por esta estrutura passo a passo, até um terrível ou auspicioso fim”. Para a crítica (Fábio Andrade), “uma abstração que visava juntar diferentes forças sob um mesmo guarda-chuva teórico. Era um esforço de nomear o que não tinha nome; um conceito, enfim”.

O editorial assinado por Fábio Andrade nos diz que “a produção de pensamento sobre cinema rapidamente absorveu o uso do termo, consolidando-o no vocabulário de forma tão assimilada que, a esta altura, dispensa pautas ou conceituações”.

Porém, isso não nos impede de fazer mais perguntas (mesmo óbvias) às da revista:

1 - O que é dispositivo?

2 - Existe um objeto físico significado pela palavra, já que falam num substantivo concreto?

3 - Onde podemos encontrá-lo? Como ele funciona? Tem moral da história?

Ainda no editorial, Fábio Andrade circunda o termo em busca de definições e (outras) questões (surgem) sobre o que pode ser “dispositivo”. Provocação que vários textos da revista tentarão responder, “decifrar as diversas influências e determinações”; mais um nó no tecido histórico: na tessitura dessa linhagem das especulações tupiniquins, o editorial afirma que ela ocorreu de maneira mais sistemática (embora não programada) na última década. E foi testada, principalmente, nas experiências (produtivas e reflexivas) aplicadas ao documentário, confirmando talvez, tese sobre a ‘realidade’ brasileira ser campo profícuo.

Então, é nesse sentido que a descrição de Fábio Andrade citada acima nos alude: há uma busca por um sentido comum (uma semântica), são forças desconexas reunidas num mesmo recanto, diversos nomes significados/subentendidos sob uma mesma palavra; estas são palavras-mágicas.

De antemão é importante perceber que um ‘dispositivo’ não é para o filme (ou para a equipe de produção), o mesmo que para a crítica. Afora ser condição primeira da existência de qualquer filme (de todo o cinema e de tudo o que pode ser considerado audiovisual, veremos), o dispositivo estabelece à composição da obra um circuito prévio a ser percorrido, facultado cumprir ou não as “regras do jogo” e com margem para os possíveis imprevistos. Essa exposição do dispositivo fílmico, no filme, contém algo de generosidade por parte de quem faz cinema, embora um desconforto ou uma crise possam estar na origem dessa partilha: quebra da ilusão ou crise de filiação.

Já a crítica tem como grande regalia (o seu privilégio de existência) ser escrita; essa escrita é uma resistência, um continuum de linguagem, onde tudo (nos filmes) está destinado a se tornar vocábulo: os títulos e épocas de produção, nomes dos atores e técnicos, personagens e cenários, tecnologias e teorias, cores e sons. Portanto, o dispositivo assume, pela natureza da crítica, outras funcionalidades; enquanto para o filme ele compõe a engrenagem de produção, para a crítica (ou para quem vê), ele (o dispositivo) funciona como ledor (ou descritor) dos filmes. Mas com esse objeto em campo, já não encontramos mais as mesmas antigas expressões.

O que nos levou a perceber que o dispositivo (fílmico e crítico) revela uma economia da palavra. Não apenas por esses estudos terem raízes marxistas, mas principalmente por reivindicarem uma dialética de “profusão x escassez” dos signos; por um lado, múltiplas definições possíveis (escondidas) num mesmo nome, de preferência singular e vulgar e encontrado em qualquer enciclopédia: “corpo” e “espaço”, por exemplo, são palavras muito utilizadas nesse período como a velar (como se diz “velar o morto”) infinitas fisionomias e paisagens; em consequência, é à proliferação de nomes originais e privados a que essa linguística se opõe: o Nome Próprio é o grande perdedor dessa história - o nome das starlets e marcas são restringidos, limitados, contidos, abreviados, barrados como se (outra coisa senão) por um dispositivo. Rouba ao Pai (ao Grande Outro, a Ordem) o direito de batismo: de dar nome às coisas; e briga com a publicidade: contra a progressão de produtos generalizados, diferenciados apenas por logos e embalagens, ao eterno lançamento de objetos parciais substituindo/adiantando-se uns aos outros.

Os dispositivos são exercícios de abalos sísmicos nos signos, significados e significantes. Um contraponto nos estudos linguísticos - conter(po)râneos desde as primeiras sistematizações pós-industriais - às tecnologias da informação e logaritmos numéricos. Termo derivado das pesquisas estruturais da linguagem – da própria linguística aos estudos da antropologia e psicanálise (os mesmos que permitiram falar em efeitos ideológicos produzidos por aparelhos de base, do Estado ao cinema), os dispositivos buscam pelo neutro da linguagem, onde ‘fala’ e ‘escrita’ representariam não mais que a capacidade de manutenção da palavra, num sentido de poder - deter o porte do local e dos instrumentos de enunciação, de onde todos os símbolos e ídolos são manufaturados e lançados. A crítica dispositiva sacoleja essas estruturas.