... e Elas os criaram à sua imagem e semelhança. |
Com a revolução industrial, um dado periférico, mas não o menos importante, será o fato do homem (e isso não implica no universal da espécie, visto essa ser uma sociedade ainda masculinista e excludente), ter principiado sua prostração e acoplamento a toda sorte de máquinas; o trabalho artesanal, nostálgico por seu contato direto com a matéria, é substituído por autômatos que agora desempenharão tarefas, antes até mesmo impossíveis, com maior rapidez e eficiência, bastando ao homem dar partida ou um manuseio de eficiência: ferramentas de transformação das matérias-primas que irão, em última instância, substituí-lo.
Todo esse insurgente maquinário transformou profundamente a
sensibilidade humana, em especial, por marcarem a passagem de uma cultura
baseada na tradição e estratificação das relações rurais à outra percepção
agora orientada pelo choque e dispersão dos centros citadinos. Porém, inseridas
numa teleologia iluminista e positivista do progresso, todas essas invenções
logo foram domesticadas, com as decorrentes demandas cognitivas estabelecidas e
novas formas de estímulo e organização assimiladas, em resposta às novas
técnicas de mobilidade, habitação, trabalho, consumo e entretenimento.
Importante ressaltar que essas experiências referem-se às sociedades dos
“países que estavam no centro da era do imperialismo”, com o “moderno
hegemônico” construindo “sua diferença no tempo (em face da tradição) e no espaço (ante os povos periféricos)”, através da
“convergência de interesse científico, dominação colonial e voyeurismo”¹.
Outra alteração circunstancial ocorrerá durante essa época
de aparelhamento humano sobre as concepções de Espaço e Representação; até a
Idade Média, o ‘espaço’ era limitado por um horizonte em geral demarcado por um
acidente geográfico, com as orientações de localização associadas às
manifestações sensoriais (com relação ao levantar e pôr-do-sol, fenômenos
meteorológicos, estações do ano, tempo de plantio, colheita e seca); e afora a
família, a vida comunitária era relegada às festas e reuniões religiosas,
normalmente sazonais. Já a ‘representação’ (pictórica, grafada, impressa,
democrática) tem desde sua origem, como condição de direito, uma existência
Divina. Do teatro grego, onde apenas os deuses eram dignos de drama aos
monarcas da idade média, os únicos com direito a retratos dos pintores
renascentistas - as representações sempre estiveram associadas com o domínio da
Técnica, a execução da Lei e a escritura da História: o Poder ou a Providência,
em suma.
Com a ascensão da burguesia (pós-revolução francesa e nova agente
histórica), a constituição de parques industriais (estabelecendo uma classe
proletária e um mercado de troca capital) e formas mais eficazes de enunciação
e censura (cultura: com o aperfeiçoamento do prelo e a invenção da chapa
fotográfica), outras percepções de espaço (agora endereçada por avenidas, praças e logradouros delimitando o local
público do privado) e tempo (cronometrado por uma escala produtiva dividida entre
trabalho, domicílio, compromissos sociais e lazer) são instituídas; e a representação
assume rígidas distinções: a principal, aquela que opõe o lugar da fala ou cena, (seja púlpito, palanque ou palco) em diametral oposição ao
local da escuta ou olhar (acondicionamento da congregação,
multidão ou plateia).
Cabe insistir: essa invasão das inovações científicas no
cotidiano e domicílios criou outra compreensão e produção do espaço social; não
apenas pelas novas técnicas e matérias utilizadas pela construção (é a época em
que o ferro e o vidro passam sistematicamente a serem utilizados em
edificações, permitindo prédios mais altos), mas principalmente por suas
finalidades (se determinado objeto é destinado ao uso industrial, comercial ou
domiciliar – formando uma cadeia produtiva) e geração de acúmulo (o quoficiente
da diferença entre pujança e penúria material);
O Cinema é fruto do quadro científico desse período: ao
mesmo tempo testemunha e expressão máxima da modernidade, por um breve período
após sua invenção, o cinematographo surge
sem um estatuto definido, desprezado pela comunidade científica e sofrendo
desdém cultural por parte das classes mais abastadas; essa falta de
regulamentação permitiu aos primeiros filmes serem realizados numa anarquia
imaginária original, com as autoridades (polícia, igreja, governo, ricos)
sendo apresentados em códigos descaracterizados, onde esses poderes dominantes
surgiam como pastiches de si. Mas dentre 20 anos (1895-1915, ano que coincide
com o fim da primeira grande guerra europeia) um sistema industrial de
fabricação de fitas estará se instalando e já terá sido cooptado pelos “poderes
do mundo” que “finalmente reconhecem a importância e eficiência do cinema no
plano da comunicação social” e, junto ao jornalismo e rádio, tornam-se o “altar
maior da comunicação de massa”². Inicia-se assim, uma segunda fase do
imperialismo colonial, não mais territorial, mas agora exportadora de sonhos e os aparelhos eletrônicos capazes de
traduzi-los, destinados ao consumo pelos espíritos.
“A segunda colonização, não mais horizontal, mas desta
vez vertical, penetra na grande reserva que é a alma humana. A alma é a nova
África (...) não há uma molécula de ar que não vibre com as mensagens que um
aparelho ou gesto tornam logo audíveis e visíveis”.
EDGAR MORIN in Cultura de Massas no Século XX
Um duplo movimento se instala: por uma via, a folha de
jornal, as ondas do rádio e a película do cinema tornam-se o lugar por
excelência dos acontecimentos “tudo o que existe,
está aqui”: aparecer ou acontecer em um desses meios significa alcançar um
espaço privilegiado e ser alçado a dignidade de portador e emissor dos
discursos oficiais; Em paralelo, consequente a isso, essa duplicação do mundo
cria uma alegoria do próprio cinema como um novo império dentro da ordem internacional,
meio-ambiente das estrelas e realezas, pódio dos vencedores que mais do que uma
indistinção, provoca uma indiferença “entre a realidade e suas representações”,
numa nova ontologia de ordem fantasmagórica, que somente se afirma (‘eu
existo’) por aparição (e retorno e sucessão). Poderíamos dizer para finalizar
que o aparato (enquanto dispositivo) passou a fundar a cena.
Esse pretensioso preâmbulo histórico é, em escala pessoal,
a tentativa de (re)unir alguns eventos recortados no tempo que, nem de perto,
tateiam o tamanho do monstro: descontado o ignorado e o que se deu nos
subterrâneos. No entanto, são interessantes quando encaradas como oportunidade de observar práticas
sociais isoladas (no caso da revolução industrial, ciclo de
experiências originadas numa ilha ao norte da Europa na passagem do séc. XVIII a XIX) e sua expansão pelo globo; muito menos consideramos
a matéria esgotada: apenas oportunidade para distender se ocorre algum evento
contemporâneo que se assemelhe no cotejo espaço-tempo, partindo de onde essa
observação se origina: um espaço entre a atração e a periferia (do cinema). E
não falo em periferia por fetiche, pois parece-me que é essa relação de
apartado x ocupação do centro que está na crise fundadora desses ensaios em
torno do dispositivo: para vê-lo melhor é preciso distância, estar fora de seu
núcleo.
Rebate, também, em retorno à pergunta contida no editorial
de Fábio Andrade “Mas por que falar da câmera, do sistema de captação, nos dias
de hoje (...), uma vez que à crítica o interesse está adiante, nos filmes?”, e
embora eu tenha recorrido exatamente aos três pontinhos excluídos dessa
questão: o nicho técnico e tecnológico no qual o cinema está profundamente
inserido e, ironia, não tenha falado de nenhum filme até agora.
Pareceu necessário. Inclusive pelas respostas indiretas
oferecidas pelo próprio editorial “motivado pela crise da relação com a
materialidade do aparato cinematográfico”, crise fundadora “no esforço de
trazer de volta para a discussão uma materialidade necessária que, por muito
tempo, parece ter sido impropriamente deixada de fora da equação conceitual”.
Em comum, eu alegaria que “esse retorno ao passado e à concretude se revela,
com isso, uma tentativa de mapear o futuro em sua virtualidade”.
Mas, e o que há de novo?
E não podemos esquecer: como as experiências com dispositivos nos documentários
brasileiros se traduzem nisso tudo?
Não há nada de novo: no cerne das questões alvorece a proclamada
acessibilidade aos meios enunciativos (ou simplesmente, às câmeras); um fato
recente: só na década de 1990 as câmeras Fuji, para fotografias caseiras, se
popularizam no Brasil. Para um enorme montante de pessoas na faixa etária dos
40 anos em
nosso país, fotos da infância são artigos raros e de luxo. Porém, o tipo de
materialidade do suporte exigido por este regime de produção de imagens
(notadamente, uma tecnologia atrelada ao século XX) tem sido varrido para as bordas
pela substituição por aparelhos (re)produtores de arquivos digitais.
Essa disseminação do aparelhamento digital causou uma
perturbação no modus operandi em que
estavam assentados os contratos anteriores de emissão e recepção de conteúdos.
Essa concessão a quem fala de/por quem versus o direito a própria imagem e palavra
é todo um ponto de honra nas lutas pós-coloniais. Não carece lembrar que os canais
comunicantes sempre estiveram sob controle em terra brasilis: durante o terço final do século passado, a televisão
brasileira alcançou a cobertura total do território nacional, algo sintomático
do momento em que o espaço público brasileiro é domesticado. A TV rouba para si, de maneira hegemônica, o porte do
pronunciamento oficial e a construção do imaginário da comunidade desejada. A
cultura brasileira torna-se televisiva, exibida simultaneamente para milhões de
aparelhos sintonizados, ocupando o tempo. Isso não implica em tipos de
interpretações de alienações. Mas sobre um espaço sequestrado, mantido em
cativeiro por poucos, na extensão de seus condicionamentos.
Contudo, se o barateamento dos equipamentos e tecnologias
audiovisuais e o aparecimento de plataformas de exibição com a internet
compartilham a posse dos meios e possibilitam a capacidade autônoma de
enunciação, também trouxeram conjuntamente, talvez até em proporção maior, a
proliferação de telas – do celular ao outdoor. Um deflagrante sentimento de
saturação das intermediações emergiu e causou a sensação da perda de algum bom lugar. À crítica em geral, um
sentimento vago de que o cinema é um estabelecimento qualquer, apenas mágico ao
nível de seu misticismo; fez-nos descobrir que o cinema tem muito mais filhos
que poderíamos supor: uma geração de irmãos bastardos.
O fato notável é que essas experiências documentais contemporâneas remontam ao funcionamento
dessas antigas engrenagens, em seus índices ontológicos. Os dispositivos
fílmicos, em suas diversas operações, oferecem um arsenal de artifícios
narrativos desmembrados, com as dobras à mostra: o que nos permite não apenas
assistir historinhas da vida de
alguém ou a mera observação cientifica e distanciada de dissecação, mas de
maneira muito mais beneficente, torna comuns os seus processos de pretensão,
produção e limitações - algo que já se apontava nas primeiras críticas sobre as
regras do jogo dos filmes de Eduardo Coutinho - no encontro do entrevisto com uma trupe de cinema, revelando essa condicionante da existência. No que
posso insistir, apresentam uma tese de que a oposição ao campo cinematográfico
não pertença tanto ao OUT (o fora), mas principalmente ao IF (e se). Não mais IN / OUT, mas IN / IF;
falam sobre o contingencial - a figuração do acontecimento: a cena. Um recorte
para o qual não existe ponto cego, apenas transformismo: condição especular.
De maneira muito redutora, até mesmo redundante, durante um
tempo tive certeza que a ‘história do cinema’ era a ‘história da película
fotográfica’: uma pesquisa que comparasse a quantidade de filmes virgens
importados pelos países e a quantidade de fitas produzidas anualmente, talvez
fosse muito revelador nesse sentido e isso tanto no sistema de produção
industrial de imaginários, quanto na possibilidade de filmetes caseiros. A
condição da existência de um filme esteve durante muito tempo, antes de
qualquer coisa, associada ao porte do meio material (câmera, rolos
fotográficos, financiamentos) que possibilitariam sua fabricação e impressão.
Esse sistema não desapareceu e ainda não sabemos se vemos sua aurora – embora
de agora em diante ele sofra mais e mais ataques com todo tipo de mineralização e
disfunção que, não nos iludamos, não impedirá a alimentação do seu núcleo;
nesse universo do pré-contato, onde até o susto e a surpresa estão previamente
calculados, o aparato, enquanto câmera/microfone/operadores e instrumento que
vela este contrato, flagraria, inclusive, o descumprimento deste acordo. E isso é muito.
¹XAVIER, Ismail. Prefácio a edição brasileira in O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
²XAVIER, Ismail. D.W. Griffith. São Paulo: editora Brasiliense, 1984.
¹XAVIER, Ismail. Prefácio a edição brasileira in O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
²XAVIER, Ismail. D.W. Griffith. São Paulo: editora Brasiliense, 1984.