quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Câmara Escura (2012, 25min); de Marcelo Pedroso

Marcelo Pedroso dando os últimos retoques na "câmara escura"
 
por Francisco Amorim

Isto não é um filme (sério)

Começam as imagens na tela, um movimento de câmera desce do topo dos prédios às fachadas das casas de algum bairro nobre de Recife, capital pernambucana.  E vemos um rosto, por enquanto, desconhecido. Tratam-se de pistas falsas, imagens ainda sem foco.

Do que podemos adiantar, Câmara Escura não será um tratado – seríssimo – sobre uma preocupação bastante mostrada na recente produção das trupes cinéfilas: a cidade & a encenação filmada (ou não), possível (ou ilegal). Ou ainda, subversiva (e ao criminoso a crítica e a crise) deste espaço filmado.    


 Os bastidores de um crime

            Pouco a pouco, os planos de filmagem serão revelados e para que possam ser executados, (nós, espectadores) somos tele-transportados para outro local: um laboratório onde veremos a confecção de um artefato – a tal câmara escura do título; um estúdio - um local do pré-visto. Esta antecipação seria um privilégio, se não descobríssemos, muito em breve, o imprevisto: seremos envolvidos num crime e o pior é que acabamos de testemunhar como tudo se instalou.                       

Um crime implica autores direto(re)s, executores. E destes, a identidade (literalmente, numa cena do filme) será revelada:

 
=>    Irmãos Pretti: membros do coletivo cearense Alumbramento, assinam a direção de dezenas de outros filmes (contam com mais comparsas). Curioso caso da reincidência de irmãos-cúmplices na história do cinema. Pelas características físicas, são gêmeos univitelinos e estão na faixa dos 20 aos 30 anos.

=>    Marcelo Pedroso (MP): membro do coletivo pernambucano Símio Filmes, cabeça (ou talking head) da gangue, 30 anos declarado. Rapaz moreno, segundo as descrições. Sobre este, mais notas:
 

Teleguiados por Marcelo Pedroso, já estivemos antes num laboratório. O retorno a este espaço (seriam o mesmo nos dois filmes?) provoca-nos a avançar em conclusões sem força de decreto - falaremos sobre estética. Assim pensada, a compreensão dessa “estética MP” teria de extrapolar este universo do falso (fictício) e abarcar todos os documentos com essa marca: resumindo num tema e num slogan, diríamos “Marcelo Pedroso é um cineasta (do) pós-humano”:

No longa-metragem KFZ-1348 (2008, co-dirigido por Gabriel Mascaro), os nove personagens do filme foram os proprietários do Fusca de placa KFZ-1348 da fábrica (1959) ao ferro-velho (2008). Os de carne e osso funcionam aqui apenas como veículos da narrativa daquele que está no centro e é o foco do filme, o automóvel. Em Pacific (2009), as pessoas têm no lugar das mãos, câmeras portáteis. Estamos próximos das ficções científicas, a máquina se acopla, torna-se um invólucro qualquer – o que leva a perceber: nos filmes de Marcelo Pedroso, o corpo humano é quem faz papel de acessório.        

            Sendo assim, o curta-metragem Corpo Presente (2011) parece melhor compreensível nesse contexto e ganha um tom de obra testamento - “Quando estamos diante de algo que, sabemos, vai desaparecer”, nos alerta a sinopse. Enquanto no filme se desenrola os preparativos funerários para que um corpo (feito em molde de gesso, não orgânico) seja depositado numa urna crematória, numa encenação muito próxima da preparação da câmara escura. Inclusive, o que vemos em ambos os filmes são bisturis cortarem isopor e tecidos, apesar das aparências.
 

Um Plano Perfeito?

O roteiro da trama é simples: como garotos que retornam da escola para casa buzinando as campainhas da vizinhança (por diversão e perversão), Marcelo Pedroso tendo em mãos a tal câmara escura (enfim: uma caixa de madeira contendo uma mini-câmera filmando e um bilhete com a introdução do texto “Metáforas da Visão” de Stan Brakhage), aperta o interfone das residências e apartamentos e anuncia uma encomenda para a casa. Abandona a caixa no portão e parte com o restante da trupe que o aguardava num carro - de onde também acompanhávamos confortavelmente a cena (é importante não esquecer: tornamo-nos testemunhas oculares do crime).

A brincadeira, verdadeira coisa de arruaceiros, termina sem graça: quando retornamos aos domicílios para saber como foi a recepção do nosso presentinho, descobrimos que a trama ganhou um desfecho policial. Num dos lares, ficaram apreensivos com o conteúdo da caixa, desconfiaram que pudesse ser uma bomba. Noutro, cabrearam ser a tentativa de assaltantes conhecerem a rotina da casa. Em retrospecto, esse resultado frustrado de adentrar as residências parece-nos o resultado previsível de uma variação, calculado em seu próprio dispositivo e eleito por montagem. Porém, e aí incide a força de Câmara Escura, do prejuízo da ação brotam revelações e associações:

A primeira e menos importante é certo imaginário sobre a criminalidade urbana que aterroriza as famílias, concedendo ao filme, por tabela, uma filiação bastarda (e forçada de minha parte) com o filme policial brasileiro (numa tradição que vai dos famosos crimes filmados dos primórdios à O Bandido da Luz Vermelha e Tropa de Elite, passando por Eles Não Usam Black-Tie e chegando ao recente e também concorrente da mostra curta-documental no FestBrasília deste ano, A Ditadura da Especulação).

O dispositivo fílmico também guarda semelhanças com o quadro “Câmera Escondida” do Sílvio Santos (e confere graus de parentesco na telerrealidade entre Marcelo Pedroso e Ivo Holanda) e afilia-se a algum tipo de programa social (ideológico?) dos cineastas pernambucanos para a distribuição e aparelhamento de câmeras pela população (Pacific, Domésticas).

 E poucas vezes os riscos que uma filmagem implica estiveram tão em jogo; o ato de dar o play (iniciar o jogo, a brincadeira, a atuação) inaugurou um campo de forças, de possibilidades, de realização e encarcerou a inocência. O alerta de bomba poderia ter provocado o alarme de um esquadrão de desarmamento. Imaginem a proporção que o filme ganharia e quantas imagens a mais teríamos? (Toda uma cobertura televisiva). Porém, tudo o que conseguimos foi um processo judicial, provavelmente por invasão de privacidade.
 

Não Temam, Temos um Herói!
 

Portanto, vemos em Câmara Escura a figura do Autor (sua Política e o seu Nome, todos assim em maiúsculo) serem promovidos ao status de criminosos. Como solucionar este ardil? Não sem cometer um outro ato um tanto arriscado.

Marcelo Pedroso, o culpado pelo filme, abandona o seu confortável e bom lugar (de controle), o papel de domador do circo, para oferecer-se aos golpes do público (a chacota e a identificação dissimuladas). Em outras palavras, saltou do extra-campo (ou da “vida real”) para o enquadramento produzido pela câmera, o campo. Jean-Louis Comolli traça uma genealogia desse gesto, de origem circense, e seus efeitos. Ele nos fala em cineastas burlescos:
 

De alguns anos para cá, o cinema documentário tem colocado o corpo (e, às vezes, a intimidade) daquela ou daquele que filma. O cineasta aparece, entra em cena, vem ao centro da arena. Não apenas interpreta um personagem mais ou menos próximo (Welles), mas faz de si mesmo um personagem, se interpreta, poderíamos dizer, em um gesto que, atravessando toda a história do cinema, traz a marca dos grandes burlescos: Keaton, Chaplin, Tati, Jerry Lewis, Moretti, Godard, Monteiro, Kitano, Mograbi...
 

Poderíamos continuar essa enumeração, no contexto audiovisual brasileiro (afora as ausências dos filmes que não vi): Amacio Mazzaropi, José do Caixão Mojica Marins, o Cabra Eduardo Coutinho, o Glauber televisivo no fim da carreira e Vladimir Carvalho em seus filmes, o conjunto da obra do coletivo Alumbramento, a aparição fantasma (no espelho) de Adirley Queirós e amealharmos todos a um tipo televisivo de frontman leadear, de Silvio Santos a Luciano Huck, do Chacrinha ao Chaves e de William Bonner ao Ratinho...

Só nos restam algumas questões: tomando "cineastas burlescos" como uma sugestão de conceito novo por J.L. Comolli, qual fato cinematográfico 'novo' surgiria daí? No nosso caso específico, o quê Marcelo Pedroso, ao se (ex)por em cena numa péssima aparência - aquela da má fotografia digital, quer (nos fazer) provar? Essas perguntas permanecerão em aberto, porque não menos importante: como terminar este texto?

Afirmei acima que o cinema de M. P. demarca uma passagem ao pós-humano. Câmara Escura parece contradizer em parte essa afirmação, para melhor afirmá-lo de outra forma: se há o generoso gesto de exposição do próprio corpo-sujeito-personagem-palavra-experiência-vida é para que estejamos cada vez mais próximos das maquinices do Inspetor Bugiganga do que da vira-latice do Chaves. Se há documentos e provas, elas tendem ao reality-show. E se há um herói (é necessário que M.P. volte ao local do crime para SALVAR o filme), ele por enquanto está caído.
 

E agora, quem vai querer se arriscar?
 

FIM

Continua...