quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Dez notas Sobre o Abismo (2012, 30min; André Brasil): uma história mal dita.

Curtas metragens:
- Filme para Poeta Cego
- Jessy
- Procurando Rita
- Sobre o Abismo


série "Theaters", de Hiroshi Sugimoto


0. A imagem estática de uma sala de cinema vazia, apesar do som ambiente dos murmúrios de um público apreensivo. As luzes diminuem até a sala ficar completamente escura. Uma tela ao fundo do quadro vem ocupar toda a tela (ou o telos?). O fundo da imagem é já uma imagem (mas será que não foi sempre assim?). O filme começa “made by Nam June Paik”: história(s) do cinema. O audiovisual é o real?  Apenas dois sentidos foram reivindicados. Do índice, apenas o ícone e a estereofonia: embora no cinema, a realidade ofereça-se (i)material – o signo entre nós, o significante puro, o puro significado.

Scénario du film 'Passion' (1982), de Jean-Luc Godard 

1. História(s) do Cinema: Jean-Luc Godard tem “deus” no nome. Ele vem à cena de costas, vemos apenas seu vulto, cabelos desgrenhados tal qual um cientista maluco diante uma tela em branco e começa a recitar em tom magistral: ele aponta a tela e diz que estamos “entre o finito e o infinito”, “entre o preto e o branco” e prenuncia “você voltou a tempos longínquos até a Bíblia, você fez coisas proibidas”, “você pode inventar o mar, a página em branco, a praia” e sentencia “você inventou o mar”. O controle do universo.



Jessy (2013, 13min; Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge)

2. Noutra de suas histórias, Godard nos diz que “o cinema não faz parte da indústria das comunicações, nem da indústria do espetáculo, mas sim da indústria dos cosméticos, da indústria das máscaras... que não é em si senão uma pequena sucursal da indústria da mentira”, ”história(s) da beleza, em suma.”... para dizer em algum outro momento, que isso talvez porque fossem garotos filmando garotas. Em Jessy (2013, 13min; Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge), a diretora Paula Lice realiza um sonho dos cahiérs de infância de (trans)vestir-se de diva – história(s) da dublagem, também, de se fazer passar pelo que não é. Vemos no filme apenas os bastidores dos preparativos da apresentação: os ensaios, a escolha da indumentária e a maquiagem, enquanto outras performers nos entretém. O curta-metragem acaba no momento em que Paula Lice (ou melhor, a já transformada Jéssica Cristopherry) sobe ao palco: uma história da beleza interrompida, o espetáculo nos foi negado. Um dia após a exibição, conversando com amigos, lembramos que no início dos anos 1990, durante nossa infância, Silvio Santos já apresentava shows de drag-queens na televisão aos domingos à noite e que os mais ingênuos de nós, não conseguiam identifica-los como homens vestidos glamourosamente de mulheres. História(s) da inocência.


3. De maneira genérica, uma voz vinda do além afirma que “por essa tela já passou boa parte da história do cinema”, mas que “a cada sessão é como se ela estivesse virgem”, pois “a tela em branco é um imenso abismo feito de esquecimento” e então “é estranho pensar que as imagens vivem ali por um momento e passam sem deixar marcas de sua passagem”. “Ou quem sabe os filmes deixam sim marcas muito pequenas que o filme seguinte recebe e que nós não notamos”, para, por fim, essa voz do além perguntar se “não é isso a história do cinema? Os respingos de uma imagem na outra que a tela vai guardando a ponto de se tornar ela mesma um pedaço da história ou ao menos o pedaço da história de alguém?”.

E eu pergunto: “essa tela”? Todas elas? As filhas menores também? Pedaço da história ou espaço onde os olhos a escrevem?                                                      

Procurando Rita (2012, 07min; Evandro Freitas)

4. A memória é um lócus habitável, um espaço? Seu Adilson (Procurando Rita, 2012) interpela o fora de campo (um lugar que não vemos, apenas supomos) e pergunta de forma enigmática se “esse é o fundo musical?”. Seu Adilson faz a mimese do choro. Seu Adilson talvez já não esteja mais lá, embora permaneça diante nossos olhos. Talvez ele tenha viajado no espaço aos seus tempos de menino, quando aprendeu a ser projecionista e excursionou pelas cidades do interior da Bahia, por onde exerceu a profissão. A passagem para essa viagem veio como uma pedra arremessada do passado numa roupagem moderna, um arquivo em MP3 do “Bolero” de Ravel. Seu Adilson, que olha através de nós, sem nos ver, estabelece o diálogo:

- Você gravou onde?
- A Música?
- Sim.
- Eu baixei da internet.

O que é a memória para um computador (machina)? É o mesmo para a espécie humana? Rito e Arquivo: seu Adilson carrega dentro de si a(s) história(s) do cinema de Cachoeira. Quem se atreveria a negar?

5. Um passeio pelas imagens dos outros, uma história feita com - as - dos outros. Documentarama: havia algo de muito simples na origem aqui ou estamos mais próximos daquelas políticas místico-anarquistas que guardam melhor os segredos enunciando-os do que calando-os?


6. Fantasmagoria: “É uma coisa banal (mais uma) dizer que tudo o que entra no campo de visão da câmera não deixa, no entanto, de pertencer a outros campos. O que vai ser filmado (quase) sempre foi filmado. E quanto às imagens das quais ainda nos alimentamos, devemos concordar que seu referente não é mais precisamente uma ‘realidade’ que experimentamos, mas sim a experiência imaginária que temos por já tê-la visto em outros filmes, o hábito formado pouco a pouco com a sua visão. Em todo plano de um homem andando na rua, eu não conecto a ele minha experiência – rica, no entanto – da caminhada, mas uma série de lembranças, da Aurora, de Murnau, até A Punição, de Jean Rouch. O que é a morte, para a nossa geração cinemaníaca que se joga nas cinematecas, senão o efeito dos corpos tombando por terra no cinema?” Ou um caixão preto, fechado e vazio no centro da sala.    

7. As linhas do asfalto correm verticalmente pela tela e uma voz num carregado sotaque sulista made from USA no diz: “nunca penso aonde vou. Mal me lembro onde estive”, “Lembro de fugir, lembro que eu fugi o teeeeeeempo todo, eu estava sempre fugindo”. Movi(e)mento. Enquanto isso, na cidade, as questões continuam... Entre afirmações e perguntas, elas interrogam “por que as imagens podem nos salvar? Por que acreditamos que elas possam nos salvar?”. Um veredicto surge, pois, “de todo modo, olhar uma imagem é sempre uma prece, um pedido”. Porque “não é essa a vida secreta das imagens? Salvar do lado de lá, algo que do lado de cá está sempre na iminência da catástrofe”. Bazin dizia, “salvar o ser pela aparência”.

Filme para Poeta Cego (2012, 26min; Gustavo Vinagre)


8. Mauro não apareceu, Rafael Burlan e Cris Negão já não estão mais presentes. Como restituí-los? A quem oferecer suas imagens (num sentido sagrado, inclusive)? Apareceram Sanã, Luna, Cinara, Maria, Èdouard Glissant, Alexandre Robatto, Marta Rocha, os burrinhos, a filha, enquanto um Pai ganhou a liberdade e seu Adilson procurou por Rita Hayworth e não encontrou. O diretor Gustavo Vinagre (Filme para Poeta Cego, 2012) foi encontrar Glauco Mattoso para ser obrigado a lamber a bota do poeta cego, entre outras coisas, em cena. O prazer também foi meu: minha vontade também era a de ordenar “bota pra chupar tudo!”, GRITAR, em plena sala de cinema. Não sem antes cegar o oriental com minha espada samurai.

9. Por último, de novo Godard. Ele nos conta mais uma de sua(s) história(s) sobre “uma operária que é despedida por seu patrão. Ela se apaixona por um estrangeiro que veio para fazer um filme na região. Mas a mulher do patrão também se apaixonou pelo estrangeiro. E o estrangeiro não consegue achar uma história, uma estória para seu filme mesmo que haja cinquenta em torno dele. É tudo”.

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