quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Memórias do Subdesenvolvimento pt. 1

- A Vida Sobre a Terra (1998, 62min). de Abderrahmane Sissako
- E Não Havia Mais Neve... (1965, 22min); de Ababacar Samb Makharam
- Em Busca da África (1997, 26min); de Manthia Diawara
- Em Busca de um Lugar Comum (2012, 80min); de Felippe Schultz Mussel
- Férias em Casa (2000, 75min); de Jean-Marie Téno
- O Mestre e o Divino (2013, 83min); de Thiago Campos
- Pele de Branco (2012, 25min); de Takumã Kuikuro & Marrayury Kuikuro




O prazer de ver um filme, sejam esses (prazeres e filmes) quais forem, sempre estiveram associados e relacionados ao desconhecido que aquelas imagens descortinam. Sendo o outro tanto desse prazer, a possibilidade de relacionar aquilo às experiências que trago comigo, num jogo de pertenço, detenho e contenho ou não. Um desfiladeiro despenha-se aqui.
Os dois primeiros dias do IV Festival de Documentários de Cachoeira (BA) apresentaram obras que privilegiaram em seus percursos de escrita, realizações que deslocaram para perto e para longe seus locais de fala (discurso), pertencimento (identidades e fronteiras) e território (espaço). Sentados em nossas poltronas no auditório do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), fomos todos convidados a abandonar nosso lugar comum e destinadamente compartilhado (a sala de projeção). Bem-vindos a bordo.
A Mostra África, em especial, apresentou quatro produções que poderíamos considerar filmes-entidades por não poderem ser dissociados daqueles que os carrega. Em A Vida Sobre a Terra (1998, 62min), Férias em Casa (2000, 75min), Em Busca da África (1997, 26min) e E Não Havia Mais Neve... (1965, 22min), os seus respectivos diretores, Abderrahmane Sissako, Jean-Marie Téno, Manthia Diawara e Ababacar Samb Makharam retornam - após períodos de exílio (voluntário ou imposto) - para (re)encontrarem nas suas terras natais espécimes de Não-Lugares particulares. Essas percepções (in)pessoais e instransferíveis foram apresentadas por procedimentos distintos, unindo-as o fato de também esses homens já não serei mais os mesmos, pois retornam como seres plus modern, diríamos, como câmeras-men.

Baobá
 A Vida sobre a Terra (1998) inicia com uma sequência sintomática num supermercado (e um supermercado não é um local qualquer, mas o lugar das transações) em alguma metrópole europeia. Especial num grau íntimo para o diretor, senão, não estaria ali ao acaso e que poderia ser tomada como ponto de partida e focal (para o espectador) de onde veremos alguns outros filmes (não só) da mostra africana; a câmera desliza en passant pelos corredores sem deter-se em nada, numa flanêrie de embalagens e gestos vulgares e Outros. Desse supermercado subimos em contra-plongée uma escada rolante que nos levará ao topo de uma Baobá: retornamos a África. A voz off do diretor lê uma carta que anuncia ao pai a chegada com um desejo de retornar e filmar “Sokolo, a vida, a vida sobre a terra, o desejo também de partir...”. A carta evidencia que esse discurso é construído (e constituído) a partir de um outro lugar, ela demarca o contato com o Fora.


E Não Havia Mais Neve... (1965, 22min)

A narração off ressurge de forma parecida, mas por motivos diferentes no curta-metragem ficcional E Não Havia Mais Neve... (1965), do diretor bissexto Ababacar Samb Makharam. Por questões técnicas - a impossibilidade da captação de som direto - permite situarmos-nos in consciência do protagonista do filme: a narração surge mais uma vez aqui como o lugar do deslocamento - do ocupar o Outro. Essa voz será nossa guia na amarga crise de pertencimento àquela realidade, até que haja uma (re)conciliação possível, não sem antes percorremos a diferença. O filme dará cabo de tal trajeto operando por uma espécie de pregnância da cena na retina, que nos permitirá um cotejo dos gestos. Num plano, o filho tornado estranho é recebido no seio da família para uma refeição. Enquanto seus parentes, todos sentados em torno da panela, comem com a mão, ele usa a colher: um artefato da mudança. No plano seguinte, o cenário será o deck de um hotel beira-mar, onde uma pose de forasteiro é solicitada, postura e modos à mesa, enquanto mulheres negras usam perucas para não assumirem seus cabelos verdadeiros – um espelho no Outro. A redenção ocorrerá pelo encontro da mulher nativa e dócil, num belo diálogo final em campo x contracampo, onde enquanto vemos o rosto desta, ouvimos a voz daquele e vice versa.

Férias em Casa (2000) poderia ser considerado o menos rico em procedimentos cinematográficos dos filmes vistos. O que não complica porém, sua potência política. O diretor Jean-Marie Téno será nosso narrador onipresente e, por isso, o construtor daquele espaço por discurso, numa viagem de regresso a escola e bairro de sua infância; e a aldeia de seus ancestrais no interior do país (Camarões) para deparar-se com um retrato de retração e estagnação no estado das coisas - uma promessa do Todo não se cumpriu. Mas por algum medio, a história oficial continua a alçar (e alcançar) o porte do discurso universal, no que ele chama de modernidade tropical. Em comum nesses três filmes, duas visões - num mesmo corpo e plano, separadas pelo tempo - num mesmo espaço: o olhar perdido (no passado) da infância que trazia consigo a promissão de um futuro melhor; e a constatação no presente que algo não se realizou, que algo inclusive piorou enquanto eles estiveram ausentes, talvez porque a tribo abriu-se demais e não cuidou do que era seu

Esses filmes travam em campo um confronto entre o cultural, o natural e o artificial sem hierarquia de valores, semanticamente. Batalha somente possível porque um outro lugar não presente em cena, mas aludido pela esperança (dos que não foram) e a experiência (dos que retornam) é vislumbrada.


O Mestre e o Divino (2013, 83min; Tiago Campos)

Batalha que O Mestre e o Divino (2013, 83min; Tiago Campos), produção exibida em premiére no Festival, torna complexa, exacerbando algumas questões presentes nos filmes supra-citados e acrescentando outros elementos a discussão aqui elaborada. O filme narra a história de Adalbert Heide (o Mestre), missionário salesiano alemão que, em 1957, começa a filmar com sua câmera super-8 a cruzada de catequização rumo ao oeste do Brasil, no estado de Mato Grosso; e Divino Tserewahu (o... Divino), índio da comunidade xavante coordenada por Heide que começa a produzir nos anos 1990 seus próprios filmes para a televisão e festivais. Adalbert tromba durante sua cruzada com a tribo dos pais de Divino em situação de dispersão, após um massacre por fazendeiros e afetados por doenças pelo contato com brancos. Logo A. Heide é aceito como pajem pela tribo dos ancestrais de D. Tserewahu, o que facilitou o processo de conversão dos índios a fé cristã, enquanto aquele foi batizado pelos índios de Tsa' Amri - Um aceita o Outro. Desde essa época, Adalbert (ou Tsa' Amri) fez diversas filmagens com as situações extraordinárias e cotidianas da vida em tribo, os eventos indígenas e católicos; além da projeção de westerns norte-americanos filmados na Iugoslávia (?) para a tribo, sempre acompanhado de perto pelos olhos atentos e respeitosos de Divino. Porém, com a aparição na tribo desse outro cineasta, Divino, esse domínio da câmera e, consequentemente, da linguagem, foi posta em cheque. O filme explícita essa relação ao acrescentar à cena outro filmmaker, o diretor Tiago Campos – e nisso um jogo histórico vem a campo: um missionário alemão, em nome de Deus; um ameríndio nativo, aprendendo a linguagem cinematográfica; e um branco local realizando um filme, mas estrangeiro ao sitiado todo. Tiago salta do fora de quadro ao campo cinematográfico, permanecendo em voz off também, como o dado instaurador da mediação de acesso, sempre presente em qualquer filme - de Um ao Outro.

Pele de Branco (2012, 25min; Takumã Kuikuro & Marrayury Kuikuro) seria o filme mudo dessa leva, não fosse por um detalhe audível: a trilha-sonora é composta por um hino tribal, ao qual a ignorância da língua desse outro tão próximo (inclusive por nacionalidade) torna interrompida a relação. Digo isso para não deixar de (a)notar que um detalhe circunstancial de todos os outros filmes seria passível de passar despercebido: existe uma passagem de língua a língua que a má escuta poderia ocultar. Em O Mestre e o Divino, o pai de Divino professa um trecho em latim, para ficarmos num exemplo; nas entrevistas de Férias em Casa, um dos rapazes secando cacau à beira da estrada concede a entrevista em inglês, talvez por ser a única língua possível ao diálogo; e em A Vida sobre a Terra certa ironia não permitia aos locais comunicar-se por telefone, enquanto as emissões da rádio francesa nos permitia ouvir límpidas as notícias de longe, até de Tóquio no Japão.

Por fim, é como estrangeiros que chegamos a um território em nosso próprio país. Foi necessária a companhia de turistas de toda parte do mundo para que pudéssemos adentrar as favelas da capital carioca sem a mediação da televisão. Em Busca de um Lugar Comum (2012, 80min; Felippe Schultz Mussel) acompanha excursões turísticas aos morros do Rio de Janeiro apresentando os bastidores desses passeios e comunidades carentes. Um dado que nos interessa aqui, novamente, é que foi necessário aos locais o domínio da língua do Outro para que pudessem portar e construir o discurso sobre aquela realidade. A dominação instala-se por linguagem.

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