domingo, 21 de setembro de 2014

Mostra Competitiva Festival de Brasília: Dia 02

Brasil S.A. (2014, 72min; Marcelo Pedroso)


Poderíamos delirar quanto à cena das origens e imaginar que foi necessário ao homem primitivo domar o ritmo para confeccionar artefatos e produzir instrumentos; que enquanto ainda produzia sons descompassados e disformes, era impossível, por exemplo, afinar a ponta de uma lança. Pela percussão rítmica e pelo jogo do marcado e do não marcado a humanidade avançou rumo ao mundo oculto da linguagem, da matemática (1, 2, 3... 1, 2, 3...), da técnica e do mito, “aquilo que, escondido na realidade, só pode vir à consciência humana através de um código, que simultaneamente serve para cifrar esta realidade e para decifrá-la” ("A Escuta", Roland Barthes).
Brasil S.A. (2014, Marcelo Pedroso), 2º concorrente do Festival de Brasília 2014, começa com uma imagem do mar, viagem com destino a terra brasilis. Logo aportamos e a associação da montagem revela que estávamos a bordo de um navio chinês. Neo-colonização. Tratores, empilhadeiras e colheitadeiras desembarcam no porto e desconfiamos por um instante descarregarem artigos xinglings diversos, para logo descobrirmos numa espécie de gag visual - como na piada da senhorinha que carrega sacos de areia numa mobilete na fronteira Brasil-Paraguai - que essas máquinas e equipamentos são já os produtos.
Um homem rema num manguezal, ecossistema costeiro de passagem entre os ambientes terrestre e marinho, rico em nutrientes por possuir grande quantidade de matéria orgânica em decomposição. Em trânsito. Uma bandeira verde e amarela na cidade com um círculo subtraído no meio faz sombra neste homem remando no manguezal. Ele continua sua viagem mangue adentro até uma linha de concreto em leve ângulo recortar a parte superior da tela. Invasão do som atroz de britadeiras. Noutro ponto, homens na sua hora de descanso do trabalho num canavial escutam um forró num rádio a pilha. A melodia do radinho é substituída pelo ritmo mecânico da chegada escoltada dos equipamentos agrícolas que havíamos visto no início do filme. Barulho histérico do funcionamento das máquinas.

Equipar: a recorrente abstração dos filmes do diretor pernambucano Marcelo Pedroso tornam sempre arriscados comentários sociais sobre o que vemos – ou o quanto o filme adere ou descola daquilo que apresenta - pois deparamo-nos sempre com a possibilidade de revirarmos não mais que apenas os nossos próprios preconceitos. Brasil S.A. é o inventário de uma sociedade com o quadro (síntese do recorte cinematográfico) cindido. Diversas forças em campo; o filme não necessariamente opõem-nas, mas distribui perguntas secretas e pungentes: que forças são essas? A quem elas servem e representam? E como podemos domá-las e subvertê-las? Da bandeira brasileira foi suprimida o globo azul com as estrelas da Federação e o letreiro de Ordem e Progresso. Sabemos do tom premonitório dos filmes de M.P., e essa bandeira hasteada, balançada pelo vento, nunca ganha os contornos da reta, do retângulo e do losango. Sua fluidez nos parece propor uma fusão (desejada, buscada?) do naive e do moderno, antecipa o movimento de deglutição (apesar da utopia descartada da ordem e progresso) ao qual todos nós estamos submetidos. Forças opostas: aquela que opõe natureza e técnica ou aquela que permite aos brincantes se fantasiarem de senhores, tomarem a casa grande e transformá-la em nave espacial rumo ao espaço? Nova ocupação. A bandeira é tomada: novos controladores. A sombra já não é um ângulo perfeito, mas célula disforme apesar de possuir um núcleo. Os raios solares ocupam o lugar do Globo. Uma nova pátria do sol.

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