sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Mostra Competitiva Festival de Brasilia: Dia 01

Sem Pena (2014, 87min; Eugênio Puppo)
Loja de Répteis (2014, 17min; Pedro Severien)
Bashar (2014, 18min; Diogo Faggiano)


Saída: o cinema imita a vida. Durante algum tempo tive a clara impressão que o que tornava-nos especial, enquanto distintivo de espécie – quando digo nós, digo bichos humanos -  na cadeia evolutiva teria sido não particularmente a capacidade de desenvolver várias linguagens, como a ciência, o cinema ou o direito. Muito mais especial (claro que isso era um pensamento estúpido) seria o nosso órgão ocular. Logo, a História pareceu-me a história do olho. Claro, que essa era uma psicologia aterrorizada e terrorista. As coisas tornam-se mais complexas quando aceitamos o “ver” apenas como um sentido entre os outros. O sentimento vinha de uma crise com o espetáculo e com a ascensão vertiginosa dos meios de mediação.

Barreira: ver em quadro.  Durante o filme Sem Pena (2014, Eugênio Puppo), primeiro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília, somente numa cena crucial já no final, veremos os rostos das pessoas que depõem. Todos os declarantes que compõem o tecido do filme somente terão seus rostos revelados nos créditos finais. Por serem todas as vozes não identificadas, essa pretensa relativização, permite-nos tomar todos declarantes como portadores de discursos de saber, embora permaneça (por direito) preservado seus lugares de fala, ou na realidade, o lugar de onde essas palavras são arremessadas.  Há méritos nisso, pois nesse processo de auscultação somos colocados no papel de juízes, onde as declarações tornam-se flutuantes, o sentido torna-se suspenso; ouvidas todas as partes, também a Lei torna-se esquizofrênica. O filme toma a forma da morosidade, da letargia por inércia, pela ausência de ação no quadro. A falta de personagens no campo visível, apenas vistas de longe na maior parte do tempo, torna o filme quadrado, aparentado aos processos jurídicos burocrático que representa – isso é um sucesso enquanto pretensão de forma; no meu caso, chamou mais atenção as possibilidades de interação reveladoras, e principalmente, embora piegas, humanizantes que são menosprezadas no decorrer do longa, a mais emblemática, o guarda embalando metodicamente os alimentos enquanto o preso aguarda, enquanto a obstinada narração em OFF barra o som ambiente.

Loja de Répteis (2014, Pedro Severien)


Transformação: o cavalo e o jacaré. Um dos diversos personagens anônimos de Sem Pena, diz que nem um cavalo suportaria viver nas condições de encarceramento em que quase um milhão de pessoas vivem no Brasil, “o único que suporta isso aqui é o ser-humano”. No curta-metragem Loja de Répteis (2014, Pedro Severien), um jacaré vive “livre” dentro duma casa, eu lembrei dele quando o personagem falou do cavalo. O que mais me atraia era imaginar como o réptil nos via. Eu pensava no jacaré, nos azulejos e nas grades. Os grandes répteis de sangue frio são bichos com fama de dormirem de olhos abertos. Que estado de dormência é esse que possibilita ao olhar naturalizar tudo o que lhe é exterior a ponto de eliminar todo mistério e viver apenas no possível, olhar suspenso dos outros sentidos? Anotou André Bazin, “É verdade que outros procedimentos, tais como a transparência, permitem ter no mesmo plano dois elementos, por exemplo o tigre e a star, cuja contiguidade criaria na vida alguns problemas”. É necessário para a satisfação obsessiva do Cinema (nossa, no caso), internalizar a diferença para salvar a representação, crermos que a perna de Maeve Jinkings foi realmente mordiscada pelo assanhado jacaré doméstico e que o amante proprietário da loja de répteis lambeu essas feridas não menos maquiadas. 
Apesar de toda ousadia textual, validade temática, força representativa e veemência na empreitada de Bashar (2014, Diogo Faggiano), a timidez em assumir o filme em primeira pessoa (vemos apenas as pernas do diretor em duas situações caminhando numa esteira no aeroporto e pelas ruas destruídas “da gloriosa cidade de Aleppo”), a ausência do corpo que carrega o filme, a não existência do eu-personagem, pode levar-nos a incidir numa injustiça que seria a completa negação do projeto de Bashar enquanto prova de sobrevivência, do vim (fui), vi (gravei) e venci (voltei a salvos). A tensão nas seqüências permanecem porque aquelas tomadas guardam o cheiro iminente de morte, fetiche a salvo porque sabemos que o diretor não morreu e nos apresentou os bastidores do filme pouco antes da exibição sob os olhos do jacaré de Loja de Répteis. Tomar Bashar como filme anônimo, como feito de imagens passadas de mão em mão, não tiraria todo o risco das filmagens, mas partilharia a coragem do diretor que viajou a Síria para posicionar-se próximo aos rebeldes e oferecer-lhes um palco (um quadro) para mostrarem suas versões dos fatos. O filme mais forte visto até aqui no Festival.

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