Loja de Répteis (2014, 17min; Pedro Severien)
Bashar (2014, 18min; Diogo Faggiano)
Saída: o cinema imita a vida. Durante algum tempo tive a
clara impressão que o que tornava-nos especial, enquanto distintivo de espécie
– quando digo nós, digo bichos humanos -
na cadeia evolutiva teria sido não particularmente a capacidade de
desenvolver várias linguagens, como a ciência, o cinema ou o direito. Muito
mais especial (claro que isso era um pensamento estúpido) seria o nosso órgão
ocular. Logo, a História pareceu-me a história do olho. Claro, que essa era uma
psicologia aterrorizada e terrorista. As coisas tornam-se mais complexas quando
aceitamos o “ver” apenas como um sentido entre os outros. O sentimento vinha de uma crise com o espetáculo e com a ascensão vertiginosa dos meios de mediação.
Barreira: ver em quadro. Durante o filme Sem Pena (2014, Eugênio
Puppo), primeiro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília,
somente numa cena crucial já no final, veremos os rostos das pessoas que depõem.
Todos os declarantes que compõem o tecido do filme somente terão seus rostos
revelados nos créditos finais. Por serem todas as vozes não identificadas,
essa pretensa relativização, permite-nos tomar todos declarantes como
portadores de discursos de saber, embora permaneça (por direito) preservado
seus lugares de fala, ou na realidade, o lugar de onde essas palavras
são arremessadas. Há méritos nisso,
pois nesse processo de auscultação somos colocados no papel de juízes, onde as
declarações tornam-se flutuantes, o sentido torna-se suspenso; ouvidas
todas as partes, também a Lei torna-se esquizofrênica. O filme toma a forma da
morosidade, da letargia por inércia, pela ausência de ação no quadro. A falta
de personagens no campo visível, apenas vistas de longe na maior parte do
tempo, torna o filme quadrado, aparentado aos processos jurídicos burocrático
que representa – isso é um sucesso enquanto pretensão de forma; no meu caso,
chamou mais atenção as possibilidades de interação reveladoras, e
principalmente, embora piegas, humanizantes que são menosprezadas no
decorrer do longa, a mais emblemática, o guarda embalando metodicamente os
alimentos enquanto o preso aguarda, enquanto a obstinada narração em OFF barra o som ambiente.
Loja de Répteis (2014, Pedro Severien) |
Apesar de toda ousadia textual, validade temática, força representativa e veemência na empreitada de Bashar (2014, Diogo Faggiano), a timidez em assumir o filme em primeira pessoa (vemos apenas as pernas do diretor em duas situações caminhando numa esteira no aeroporto e pelas ruas destruídas “da gloriosa cidade de Aleppo”), a ausência do corpo que carrega o filme, a não existência do eu-personagem, pode levar-nos a incidir numa injustiça que seria a completa negação do projeto de Bashar enquanto prova de sobrevivência, do vim (fui), vi (gravei) e venci (voltei a salvos). A tensão nas seqüências permanecem porque aquelas tomadas guardam o cheiro iminente de morte, fetiche a salvo porque sabemos que o diretor não morreu e nos apresentou os bastidores do filme pouco antes da exibição sob os olhos do jacaré de Loja de Répteis. Tomar Bashar como filme anônimo, como feito de imagens passadas de mão em mão, não tiraria todo o risco das filmagens, mas partilharia a coragem do diretor que viajou a Síria para posicionar-se próximo aos rebeldes e oferecer-lhes um palco (um quadro) para mostrarem suas versões dos fatos. O filme mais forte visto até aqui no Festival.
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