Os comentários a seguir terão como missão orbitar entre
dois pólos: ao norte, o imã magnético serão os textos publicados na edição
(maio 2013) da revista online Cinética, tendo como pauta e campo de
atuação, um debate amplo acerca do dispositivo
cinematográfico; e nas latitudes mais ao sul, os ventos (as lembranças) de
alguns títulos, em especial os documentários participantes da 45º edição do
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
De partida, três explicações ligeiras foram recolhidas ao
longo dos textos da publicação: na origem (Foucault), dispositivo denominava
“um conjunto de regras que age sobre os seres viventes”. No cinema (Adrian
Martin), “um filme-dispositivo (...) é ao mesmo tempo um conceito (...) e uma
máquina. Antes de tudo, é um filme conceitual, (no horizonte da arte
conceitual), uma disposição (...) que usualmente anuncia sua estrutura ou
sistema de início, na primeira cena, até mesmo em seu título, e então deve
seguir o caminho traçado por esta estrutura passo a passo, até um terrível ou
auspicioso fim”. Para a crítica (Fábio Andrade), “uma abstração que visava
juntar diferentes forças sob um mesmo guarda-chuva teórico. Era um esforço de
nomear o que não tinha nome; um conceito, enfim”.
O editorial assinado por Fábio Andrade nos diz que “a
produção de pensamento sobre cinema rapidamente absorveu o uso do termo,
consolidando-o no vocabulário de forma tão assimilada que, a esta altura,
dispensa pautas ou conceituações”.
1 - O que é dispositivo?
2 - Existe um objeto físico significado pela palavra, já
que falam num substantivo concreto?
3 - Onde podemos encontrá-lo? Como ele funciona? Tem moral
da história?
Ainda no editorial, Fábio Andrade circunda o termo em busca
de definições e (outras) questões (surgem) sobre o que pode ser “dispositivo”.
Provocação que vários textos da revista tentarão responder, “decifrar as
diversas influências e determinações”; mais um nó no tecido histórico: na tessitura dessa linhagem das especulações
tupiniquins, o editorial afirma que ela ocorreu de maneira mais sistemática
(embora não programada) na última década. E foi testada, principalmente, nas
experiências (produtivas e reflexivas) aplicadas ao documentário, confirmando
talvez, tese sobre a ‘realidade’ brasileira ser campo profícuo.
Então, é nesse sentido que a descrição de Fábio Andrade
citada acima nos alude: há uma busca por um sentido comum (uma semântica), são
forças desconexas reunidas num mesmo recanto, diversos nomes
significados/subentendidos sob uma mesma palavra; estas são palavras-mágicas.
De antemão é importante perceber que um ‘dispositivo’ não é
para o filme (ou para a equipe de produção), o mesmo que para a crítica. Afora
ser condição primeira da existência de qualquer filme (de todo o cinema e de
tudo o que pode ser considerado audiovisual, veremos), o dispositivo estabelece
à composição da obra um circuito prévio a ser percorrido, facultado cumprir ou
não as “regras do jogo” e com margem para os possíveis imprevistos. Essa
exposição do dispositivo fílmico, no filme, contém algo de generosidade por
parte de quem faz cinema, embora um desconforto ou uma crise possam estar na
origem dessa partilha: quebra da ilusão ou crise de filiação.
Já a crítica tem como grande regalia (o seu privilégio de
existência) ser escrita; essa escrita é uma resistência,
um continuum de linguagem, onde tudo
(nos filmes) está destinado a se tornar vocábulo: os títulos e épocas de
produção, nomes dos atores e técnicos, personagens e cenários, tecnologias e
teorias, cores e sons. Portanto, o dispositivo assume, pela natureza da
crítica, outras funcionalidades; enquanto para o filme ele compõe a engrenagem
de produção, para a crítica (ou para quem vê), ele (o dispositivo) funciona
como ledor (ou descritor) dos filmes. Mas com esse objeto em campo, já
não encontramos mais as mesmas antigas expressões.
O que nos levou a perceber que o dispositivo (fílmico e
crítico) revela uma economia da palavra.
Não apenas por esses estudos terem raízes marxistas, mas principalmente por
reivindicarem uma dialética de “profusão x escassez” dos signos; por um lado, múltiplas definições possíveis (escondidas)
num mesmo nome, de preferência singular e vulgar e encontrado em qualquer
enciclopédia: “corpo” e “espaço”, por exemplo, são palavras muito utilizadas
nesse período como a velar (como se diz “velar o morto”) infinitas fisionomias
e paisagens; em consequência, é à proliferação de nomes originais e privados a
que essa linguística se opõe: o Nome Próprio é o grande perdedor dessa história
- o nome das starlets e marcas são
restringidos, limitados, contidos, abreviados, barrados como se (outra coisa
senão) por um dispositivo. Rouba ao Pai (ao Grande Outro, a Ordem) o direito de
batismo: de dar nome às coisas; e briga com a publicidade: contra a progressão
de produtos generalizados, diferenciados apenas por logos e embalagens, ao eterno lançamento de objetos parciais
substituindo/adiantando-se uns aos outros.
Os dispositivos são exercícios de abalos sísmicos nos
signos, significados e significantes. Um contraponto nos estudos linguísticos -
conter(po)râneos desde as primeiras sistematizações pós-industriais - às
tecnologias da informação e logaritmos numéricos. Termo derivado das pesquisas
estruturais da linguagem – da própria linguística aos estudos da antropologia e
psicanálise (os mesmos que permitiram falar em efeitos ideológicos produzidos
por aparelhos de base, do Estado ao cinema), os dispositivos buscam pelo neutro da linguagem, onde ‘fala’ e
‘escrita’ representariam não mais que a capacidade de manutenção da palavra,
num sentido de poder - deter o porte do local e dos instrumentos de enunciação,
de onde todos os símbolos e ídolos são manufaturados e lançados. A crítica dispositiva
sacoleja essas estruturas.
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