sábado, 13 de julho de 2013

Dispositivo 1' - A crítica e a escrita


Os comentários a seguir terão como missão orbitar entre dois pólos: ao norte, o imã magnético serão os textos publicados na edição (maio 2013) da revista online Cinética, tendo como pauta e campo de atuação, um debate amplo acerca do dispositivo cinematográfico; e nas latitudes mais ao sul, os ventos (as lembranças) de alguns títulos, em especial os documentários participantes da 45º edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

De partida, três explicações ligeiras foram recolhidas ao longo dos textos da publicação: na origem (Foucault), dispositivo denominava “um conjunto de regras que age sobre os seres viventes”. No cinema (Adrian Martin), “um filme-dispositivo (...) é ao mesmo tempo um conceito (...) e uma máquina. Antes de tudo, é um filme conceitual, (no horizonte da arte conceitual), uma disposição (...) que usualmente anuncia sua estrutura ou sistema de início, na primeira cena, até mesmo em seu título, e então deve seguir o caminho traçado por esta estrutura passo a passo, até um terrível ou auspicioso fim”. Para a crítica (Fábio Andrade), “uma abstração que visava juntar diferentes forças sob um mesmo guarda-chuva teórico. Era um esforço de nomear o que não tinha nome; um conceito, enfim”.

O editorial assinado por Fábio Andrade nos diz que “a produção de pensamento sobre cinema rapidamente absorveu o uso do termo, consolidando-o no vocabulário de forma tão assimilada que, a esta altura, dispensa pautas ou conceituações”.

Porém, isso não nos impede de fazer mais perguntas (mesmo óbvias) às da revista:

1 - O que é dispositivo?

2 - Existe um objeto físico significado pela palavra, já que falam num substantivo concreto?

3 - Onde podemos encontrá-lo? Como ele funciona? Tem moral da história?

Ainda no editorial, Fábio Andrade circunda o termo em busca de definições e (outras) questões (surgem) sobre o que pode ser “dispositivo”. Provocação que vários textos da revista tentarão responder, “decifrar as diversas influências e determinações”; mais um nó no tecido histórico: na tessitura dessa linhagem das especulações tupiniquins, o editorial afirma que ela ocorreu de maneira mais sistemática (embora não programada) na última década. E foi testada, principalmente, nas experiências (produtivas e reflexivas) aplicadas ao documentário, confirmando talvez, tese sobre a ‘realidade’ brasileira ser campo profícuo.

Então, é nesse sentido que a descrição de Fábio Andrade citada acima nos alude: há uma busca por um sentido comum (uma semântica), são forças desconexas reunidas num mesmo recanto, diversos nomes significados/subentendidos sob uma mesma palavra; estas são palavras-mágicas.

De antemão é importante perceber que um ‘dispositivo’ não é para o filme (ou para a equipe de produção), o mesmo que para a crítica. Afora ser condição primeira da existência de qualquer filme (de todo o cinema e de tudo o que pode ser considerado audiovisual, veremos), o dispositivo estabelece à composição da obra um circuito prévio a ser percorrido, facultado cumprir ou não as “regras do jogo” e com margem para os possíveis imprevistos. Essa exposição do dispositivo fílmico, no filme, contém algo de generosidade por parte de quem faz cinema, embora um desconforto ou uma crise possam estar na origem dessa partilha: quebra da ilusão ou crise de filiação.

Já a crítica tem como grande regalia (o seu privilégio de existência) ser escrita; essa escrita é uma resistência, um continuum de linguagem, onde tudo (nos filmes) está destinado a se tornar vocábulo: os títulos e épocas de produção, nomes dos atores e técnicos, personagens e cenários, tecnologias e teorias, cores e sons. Portanto, o dispositivo assume, pela natureza da crítica, outras funcionalidades; enquanto para o filme ele compõe a engrenagem de produção, para a crítica (ou para quem vê), ele (o dispositivo) funciona como ledor (ou descritor) dos filmes. Mas com esse objeto em campo, já não encontramos mais as mesmas antigas expressões.

O que nos levou a perceber que o dispositivo (fílmico e crítico) revela uma economia da palavra. Não apenas por esses estudos terem raízes marxistas, mas principalmente por reivindicarem uma dialética de “profusão x escassez” dos signos; por um lado, múltiplas definições possíveis (escondidas) num mesmo nome, de preferência singular e vulgar e encontrado em qualquer enciclopédia: “corpo” e “espaço”, por exemplo, são palavras muito utilizadas nesse período como a velar (como se diz “velar o morto”) infinitas fisionomias e paisagens; em consequência, é à proliferação de nomes originais e privados a que essa linguística se opõe: o Nome Próprio é o grande perdedor dessa história - o nome das starlets e marcas são restringidos, limitados, contidos, abreviados, barrados como se (outra coisa senão) por um dispositivo. Rouba ao Pai (ao Grande Outro, a Ordem) o direito de batismo: de dar nome às coisas; e briga com a publicidade: contra a progressão de produtos generalizados, diferenciados apenas por logos e embalagens, ao eterno lançamento de objetos parciais substituindo/adiantando-se uns aos outros.

Os dispositivos são exercícios de abalos sísmicos nos signos, significados e significantes. Um contraponto nos estudos linguísticos - conter(po)râneos desde as primeiras sistematizações pós-industriais - às tecnologias da informação e logaritmos numéricos. Termo derivado das pesquisas estruturais da linguagem – da própria linguística aos estudos da antropologia e psicanálise (os mesmos que permitiram falar em efeitos ideológicos produzidos por aparelhos de base, do Estado ao cinema), os dispositivos buscam pelo neutro da linguagem, onde ‘fala’ e ‘escrita’ representariam não mais que a capacidade de manutenção da palavra, num sentido de poder - deter o porte do local e dos instrumentos de enunciação, de onde todos os símbolos e ídolos são manufaturados e lançados. A crítica dispositiva sacoleja essas estruturas.

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