Marcelo Pedroso dando os últimos retoques na "câmara escura"
por Francisco Amorim
Isto não é um filme (sério)
Começam as
imagens na tela, um movimento de câmera desce do topo dos prédios às fachadas
das casas de algum bairro nobre de Recife, capital pernambucana. E vemos um rosto, por enquanto, desconhecido.
Tratam-se de pistas falsas, imagens ainda sem foco.
Do que podemos
adiantar, Câmara Escura não será um tratado – seríssimo – sobre uma
preocupação bastante mostrada na recente produção das trupes cinéfilas:
a cidade & a encenação filmada (ou não), possível (ou ilegal). Ou ainda,
subversiva (e ao criminoso a crítica e a crise) deste espaço filmado.
Os
bastidores de um crime
Pouco
a pouco, os planos de filmagem serão revelados e para que possam ser
executados, (nós, espectadores) somos tele-transportados para outro local: um
laboratório onde veremos a confecção de um artefato – a tal câmara escura do
título; um estúdio - um local do pré-visto. Esta antecipação seria um
privilégio, se não descobríssemos, muito em breve, o imprevisto: seremos
envolvidos num crime e o pior é que acabamos de testemunhar como tudo se
instalou.
Um crime
implica autores direto(re)s, executores. E destes, a identidade (literalmente,
numa cena do filme) será revelada:
=> Irmãos Pretti: membros do coletivo cearense Alumbramento, assinam
a direção de dezenas de outros filmes (contam com mais comparsas). Curioso caso
da reincidência de irmãos-cúmplices na história do cinema. Pelas
características físicas, são gêmeos univitelinos e estão na faixa dos 20 aos 30
anos.
=> Marcelo Pedroso (MP): membro do coletivo pernambucano Símio
Filmes, cabeça (ou talking head) da gangue, 30 anos declarado. Rapaz
moreno, segundo as descrições. Sobre este, mais notas:
Teleguiados por Marcelo Pedroso, já
estivemos antes num laboratório. O retorno a este espaço (seriam o mesmo nos
dois filmes?) provoca-nos a avançar em conclusões sem força de decreto -
falaremos sobre estética. Assim pensada, a compreensão dessa “estética MP”
teria de extrapolar este universo do falso (fictício) e abarcar todos os documentos
com essa marca: resumindo num tema e num slogan, diríamos “Marcelo
Pedroso é um cineasta (do) pós-humano”:
No longa-metragem KFZ-1348
(2008, co-dirigido por Gabriel Mascaro), os nove personagens do filme foram os
proprietários do Fusca de placa KFZ-1348 da fábrica (1959) ao ferro-velho
(2008). Os de carne e osso funcionam aqui apenas como veículos da
narrativa daquele que está no centro e é o foco do filme, o automóvel. Em Pacific
(2009), as pessoas têm no lugar das mãos, câmeras portáteis. Estamos
próximos das ficções científicas, a máquina se acopla, torna-se um invólucro
qualquer – o que leva a perceber: nos filmes de Marcelo Pedroso, o corpo humano
é quem faz papel de acessório.
Sendo
assim, o curta-metragem Corpo Presente (2011) parece melhor
compreensível nesse contexto e ganha um tom de obra testamento - “Quando
estamos diante de algo que, sabemos, vai desaparecer”, nos alerta a sinopse.
Enquanto no filme se desenrola os preparativos funerários para que um corpo
(feito em molde de gesso, não orgânico) seja depositado numa urna crematória,
numa encenação muito próxima da preparação da câmara escura. Inclusive, o que
vemos em ambos os filmes são bisturis cortarem isopor e tecidos, apesar das
aparências.
Um Plano Perfeito?
O roteiro da trama é simples: como garotos que retornam da escola para
casa buzinando as campainhas da vizinhança (por diversão e perversão), Marcelo
Pedroso tendo em mãos a tal câmara escura (enfim: uma caixa de madeira contendo
uma mini-câmera filmando e um bilhete com a introdução do texto “Metáforas
da Visão” de Stan Brakhage), aperta o interfone das residências e
apartamentos e anuncia uma encomenda para a casa. Abandona a caixa no portão e
parte com o restante da trupe que o aguardava num carro - de onde também
acompanhávamos confortavelmente a cena (é importante não esquecer: tornamo-nos
testemunhas oculares do crime).
A brincadeira, verdadeira coisa de arruaceiros, termina sem graça:
quando retornamos aos domicílios para saber como foi a recepção do nosso
presentinho, descobrimos que a trama ganhou um desfecho policial. Num dos
lares, ficaram apreensivos com o conteúdo da caixa, desconfiaram que pudesse ser
uma bomba. Noutro, cabrearam ser a tentativa de assaltantes conhecerem a rotina
da casa. Em retrospecto, esse resultado frustrado de adentrar as residências
parece-nos o resultado previsível de uma variação, calculado em seu próprio
dispositivo e eleito por montagem. Porém, e aí incide a força de Câmara Escura, do prejuízo da
ação brotam revelações e associações:
A primeira e menos importante é certo imaginário sobre a criminalidade
urbana que aterroriza as famílias, concedendo ao filme, por tabela, uma
filiação bastarda (e forçada de minha parte) com o filme policial brasileiro
(numa tradição que vai dos famosos crimes filmados dos primórdios à O
Bandido da Luz Vermelha e Tropa de Elite, passando por Eles Não
Usam Black-Tie e chegando ao recente e também concorrente da mostra
curta-documental no FestBrasília deste ano, A Ditadura da Especulação).
O dispositivo fílmico também guarda semelhanças com o quadro “Câmera
Escondida” do Sílvio Santos (e confere graus de parentesco na telerrealidade
entre Marcelo Pedroso e Ivo Holanda) e afilia-se a algum tipo de programa
social (ideológico?) dos cineastas pernambucanos para a distribuição e
aparelhamento de câmeras pela população (Pacific, Domésticas).
E poucas vezes os riscos que uma
filmagem implica estiveram tão em jogo; o ato de dar o play (iniciar o
jogo, a brincadeira, a atuação) inaugurou um campo de forças, de
possibilidades, de realização e encarcerou a inocência. O alerta de
bomba poderia ter provocado o alarme de um esquadrão de desarmamento. Imaginem
a proporção que o filme ganharia e quantas imagens a mais teríamos? (Toda uma
cobertura televisiva). Porém, tudo o que conseguimos foi um processo judicial,
provavelmente por invasão de privacidade.
Não Temam, Temos um Herói!
Portanto, vemos em Câmara Escura a figura do Autor (sua Política
e o seu Nome, todos assim em maiúsculo) serem promovidos ao status de
criminosos. Como solucionar este ardil? Não sem cometer um outro ato um tanto
arriscado.
Marcelo Pedroso, o culpado pelo filme, abandona o seu confortável e bom
lugar (de controle), o papel de domador do circo, para oferecer-se aos golpes
do público (a chacota e a identificação dissimuladas). Em outras palavras,
saltou do extra-campo (ou da “vida real”) para o enquadramento produzido pela
câmera, o campo. Jean-Louis Comolli traça uma genealogia desse gesto, de origem
circense, e seus efeitos. Ele nos fala em cineastas burlescos:
De alguns anos
para cá, o cinema documentário tem colocado o corpo (e, às vezes, a intimidade)
daquela ou daquele que filma. O cineasta aparece, entra em cena, vem ao centro
da arena. Não apenas interpreta um personagem mais ou menos próximo (Welles),
mas faz de si mesmo um personagem, se interpreta, poderíamos dizer, em um gesto que, atravessando toda a
história do cinema, traz a marca dos grandes burlescos: Keaton, Chaplin, Tati,
Jerry Lewis, Moretti, Godard, Monteiro, Kitano, Mograbi...
Poderíamos continuar essa enumeração, no contexto audiovisual
brasileiro (afora as ausências dos filmes que não vi): Amacio Mazzaropi, José do
Caixão Mojica Marins, o Cabra Eduardo Coutinho, o Glauber televisivo no fim da
carreira e Vladimir Carvalho em seus filmes, o conjunto da obra do coletivo
Alumbramento, a aparição fantasma (no espelho) de Adirley Queirós e
amealharmos todos a um tipo televisivo de frontman leadear, de Silvio
Santos a Luciano Huck, do Chacrinha ao Chaves e de William Bonner ao Ratinho...
Só nos restam algumas questões: tomando "cineastas burlescos" como uma sugestão de conceito novo por J.L.
Comolli, qual fato cinematográfico 'novo' surgiria daí? No nosso caso específico, o quê
Marcelo Pedroso, ao se (ex)por em cena numa péssima aparência - aquela
da má fotografia digital, quer (nos fazer) provar? Essas perguntas permanecerão
em aberto, porque não menos importante: como terminar este texto?
Afirmei acima que o cinema de M. P. demarca uma passagem ao pós-humano. Câmara
Escura parece contradizer em parte essa afirmação, para melhor afirmá-lo de
outra forma: se há o generoso gesto de exposição do próprio corpo-sujeito-personagem-palavra-experiência-vida
é para que estejamos cada vez mais próximos das maquinices do Inspetor
Bugiganga do que da vira-latice do Chaves. Se há documentos e provas,
elas tendem ao reality-show. E se há um herói (é necessário
que M.P. volte ao local do crime para SALVAR o filme), ele por enquanto está
caído.
E agora, quem vai querer se arriscar?
FIM
Continua...
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